[Crítica] Martinho da Vila combina samba, beleza e tragédia em ‘Negra Ópera’

Martinho da Vila
Martinho da Vila combina samba, beleza e tragédia em novo álbum. (Foto: divulgação).

[Crítica] Martinho da Vila combina samba, beleza e tragédia em ‘Negra Ópera’

Aos 85 anos, Martinho da Vila é dono de um legado fundamental na música popular brasileira e coleciona álbuns que são obras primas do samba. Diante dessa bagagem se torna ainda mais interessante quando um medalhão do samba como ele se permite trafegar em uma zona ainda pouco explorada. É o que acontece em “Negra ópera”, seu novo álbum.

Tragédia e resistência

O título resume bem a obra que constrói de fato uma ópera ao longo das suas 12 faixas. A introdução com um arranjo orquestral épico que encerra com Martinho evocando a figura de Zumbi dos Palmares, dando o tom de resistência do povo preto brasileiro em meio ao fantasma da morte que os cerca constantemente.

A morte, inclusive, é um elemento central de “Negra ópera”. As regravações de sambas antigos completadas com mais três faixas inéditas trazem histórias marcadas por tragédias e que giram em torno do tema, porém de forma sempre poética, carregada de beleza e embalada pela voz confortante do sambista.

Segundo o próprio Martinho da Vila a ideia para o projeto surgiu da sua vontade de fazer algo diferente, já que seus discos são “sempre muito alegres”. e de Fato a obra já nasce como um ponto de destaque em sua discografia, não só pelo elemento da tristeza presente mas pela maestria com a qual ele é combinado com o samba criando músicas ricas em poesia e significados.

O álbum é inspirado no livro “Ópera negra” (2001), de autoria do próprio Martinho da Vila, que conta a história de um ex-presidiario que cumpre sua pena e deixa a prisão, porém tem que enfrentar a crueldade implacável da sociedade racista. A luta negra pela vida e pela dignidade é outra força que rege “Negra Ópera”.

Martinho da Vila
Capa de “Negra Ópera”, novo álbum de Martinho da Vila. (Foto: divulgação).

Destaques

“Heróis da Liberdade”, segunda faixa do álbum, samba-enredo da Império Serrano para o  carnaval de 1969, evidencia o caráter de resistência da obra. “Timbó”, de Ramon Russo, gravada com a participação do rapper Will Kevin conta a história feiticeiro africano que vive na Ilha de Marajó e que dá forma a uma nova vida com o seu falecimento.

“Exu das Sete” , uma dos sambas inéditos, conta com a participação de Preto Ferreira, filho de Martinho, traz um ponto de umbanda como base e é uma celebração ao referido orixá. “Dois de Ouro” mantém a reverência a herança africana com um samba de roda. “Ê, berimbau/ Uma corda de aço e um arco de pau”, diz os versos.

“Malvadez Durão”, parceria com as filhas Mart’nália e Maíra Ferreira (piano), conta a história da morte passional de um líder do morro “valente, mas muito considerado”, que é cercada de mistério, “o criminoso ninguém viu”. A faixa encerra com um delicado diálogo entre pai e filha que menciona outro pilar do samba, Zé Keti.

Um dos pontos altos do álbum é “Ascender as Velas”, samba escrito por Zé Keti e que aqui Martinho da vila divide a voz com Chico Cézar em um dueto minimalista, porém intenso que destaca no peso dos vocais a indignação pela constante violência policial contra as comunidades negras no Brasil. O álbum encerra com o clássico “Iracema”, de Adoniram Barbosa em uma interpretação preciosa acompanhada por piano de Maíra Freitas.

Em “Negra Ópera”, Martinho da Vila nos brinda com sua sabedoria e olhar sensível para o cotidiano dos morros em uma obra intensa, que contrasta a tristeza das tragédias retratadas com as releituras primorosas de sambas clássicos e as músicas inéditas que também já nascem grandes. Um disco para ouvir, reouvir e redescobrir a cada nova vez.