Criolo retorna ao rap com força total em ‘Sobre Viver’

Como sobreviver e ter esperança em meio ao caos? É o que Criolo tenta descobrir em seu novo álbum, “Sobre Viver“. Primeiro disco de inéditas desde o projeto de samba “Espiral de Ilusão” e o que marca seu retorno ao rap, desde “Convoque seu Buda” (2014), a obra traz de volta toda a força e contundência dos versos do paulistano.

Capa do 'Sobre viver', de Criolo (Foto: Divulgação/Helder Fruteira)
Capa do ‘Sobre viver’, de Criolo (Foto: Divulgação/Helder Fruteira)

Sobre Viver” é fruto da indignação, do luto e da vontade de viver de seu autor. Os anos da pandemia irão ficar para sempre marcados na vida de Criolo pela perda de sua irmã, Cleane Gomes, que morreu por complicações da Covid -19. Junto a isso está todo o período sombrio vivido no Brasil nos anos de governo do presidente Jair Bolsonaro. 

Dentro desse contexto, o artista não deixa de colocar os dedos nas feridas dos temas mais urgentes da atualidade brasileira, mas faz isso sem pesar o clima. Apesar do discurso forte e sem papas na língua, o álbum aponta para o futuro e deixa um fundo de esperança, ainda que dolorida. 

Apoiado pela produção musical do duo Tropkillaz, Criolo volta para a combinação do rap com estilos ligados a MPB que marcou os álbuns “Nó na Orelha” (2011) e “Convoque Seu Buda” (2014). Aqui, os caminhos sonoros traçados se mostram bastante acertados e reforçam a força e a explosão de sentimento das letras. 

Novo álbum de Criolo é fruto da indignação, do luto e da vontade de viver de seu autor (Foto: Divulgação/Helder Fruteira)
Novo álbum de Criolo é fruto da indignação, do luto e da vontade de viver de seu autor (Foto: Divulgação/Helder Fruteira)

Diário do Kaos” abre a obra com os versos viscerais de seu autor, embalados por um soul que potencializa a alta carga emocional desse desabafo que é, ao mesmo tempo, um grito de resistência. A faixa leva o nome do que seria o primeiro título do álbum. O “K” em Kaos vem de Kleber, nome original de Criolo.

Em “Pretos Ganhando Dinheiro Incomoda Demais“, o paulistano vai para o trap acompanhado de sintetizadores e bateria, que remetem de leve aos anos 1980, para falar da marginalização e o genocídio da população negra nas periferias e o incomodo visível que se nota quando ela insiste em buscar melhores condições de vida.

Moleques São Meninos, Crianças São Também” usa a veia combativa histórica do reggae para debater a perda da infância entre as crianças pretas que são expostas desde cedo à realidade cruel de uma parte esquecida do Brasil. “Onde o estado não chega, a maldade traça o norte / Pra morte da vida daquela criança”, diz a letra.

Em “Ogum Ogum“, o rapper traz Mayra Andrade, cantora nascida em Cuba e criada em Cabo Verde, para abordar a fé como combustível para seguir em frente e, ao mesmo, tempo apontar a intolerância religiosa que tem como principal alvo as religiões de matriz africana. O tema segue também na excelente “Yemanjá Chegou“.

Sétimo templário” é uma das faixas mais intensas. Se volta diretamente para o atual governo e seu projeto de destruição do Brasil. “No eBay da Amazônia maceta jogar não pode / Lacinho de presente rumo a América do Norte / Assassinato em série, cês votaram na morte”

Em “Me corte na boca do céu, a morte não tem perdão“, a euforia do carnaval contrasta com o luto e a solidão sentida pelo autor. Os versos explosivos ganham ainda mais força quando são cantados na voz de Milton Nascimento

Pequenina” é outro dos momentos mais bonitos e mais íntimos do disco. Homenagem de Criolo a sua irmã, e um lamento por todo o descaso visto no auge da pandemia, reforçado pelas participações de Jaques Morelenbaum, MC Hariel, Liniker e a mãe do artista, Maria Vilani.

Quem planta amor aqui vai morrer” é dedicada a ativistas brasileiros que viraram mártires, após serem assassinados, como Chico Mendes e Marielle Franco. “Aprendendo a Sobreviver” encerra a obra com um tom mais ameno, mas que não deixa de evidenciar o caos que ainda impera e que tem endereço certo. 

Criolo retorna ao rap com força total em “Sobre Viver“. No álbum, ele consegue catalisar todas as angústias, perdas e injustiças do Brasil nos últimos anos, com toda a sinceridade e poesia já conhecidas, sem perder a beleza e sem despencar para o ceticismo. Um olhar do qual a música brasileira não pode abrir mão.