Kendrick Lamar confronta seu lugar na fama em ‘Mr. Morale & the Big Steppers’

Na última década, Kendrick Lamar se tornou um mito. Com uma sequência de discos, que redefiniram os rumos do rap e tiveram um impacto político e social que o colocaram como um porta-voz do movimento anti-racista, o rapper americano está entre os gigantes. 

Kendrick Lamar
Capa de Mr. Morale & the Big Steppers, novo álbum de Kendrick Lamar. Foto: Renell Medrano.

Mr. Morale & the Big Steppers” pretende ser uma antítese de todo esse status. O álbum sucessor de “Damn“, único disco de rap a ganhar o prêmio Pulitzer, traz um Kendrick Lamar que expõe suas fragilidades, seus medos, suas falhas e está o tempo todo questionando seu lugar na fama. 

A capa mostra o artista usando uma coroa de espinhos e segurando sua filha mais velha e, ao fundo, sua esposa, Whitney Alford, carrega o filho mais novo do casal, que até então, nunca havia sido revelado. A imagem é uma boa síntese do que é o álbum. Uma amostra de quem é Kendrick Lamar, longe dos holofotes e das inquietações mais íntimas que pairam na sua mente.

Mas, por mais que o rapper californiano queira fazer parecer o contrário, a grandiosidade está na essência da obra. A prova disso é que o disco estreou no topo Billboard 200. A principal parada de álbuns dos Estados Unidos, fazendo a melhor semana de vendas de 2022 até agora.

A sonoridade do rap que se entrelaça com o jazz, o soul e o R&B, refinada por uma produção de alto nível, dá a potência necessária para as letras densas e quilométricas disparadas pelo autor como um desabafo e uma reflexão.

A obra é dividida em duas partes com nove faixas cada. A abertura em “United Grief” traz uma voz que pede a Kendrick para “dizer a verdade a eles”. A partir daí, o artista começa a falar de falhas, inseguranças e detalhes íntimos sobre si mesmo, como se estivesse dando golpes em sua imagem pública.

N 95” faz referência à máscara que ficou popular durante o auge da pandemia do novo coronavírus. Mas aqui ela é usada como uma metáfora para ele próprio tirar sua máscara de forte e expor os medos e angústias vividos desde de março de 2020, junto com o resto do mundo.

Em “Worldwide Steppers“, Lamar traz uma batida nervosa, como a trilha de um filme de suspense, para falar do medo criar sua filha enquanto os tubarões estão do lado de fora; do bloqueio criativo que ele teve por dois anos e questões relacionadas à saúde mental.

Em “Father Time“, ao lado de Sampha, o rapper versa sobre a relação conturbada com seu pai e como ela o moldou, e faz uma reflexão sobre paternidade entre homens negros. Ele ainda cita a reconciliação entre Drake e Kanye West para confessar que não é tão maduro quanto imaginava.

We Cry Together” é um dos momentos mais impressionantes da obra. A faixa inicia com um sample de Florence + The Machine e segue como a interpretação de uma briga de casal com a participação da cantora Taylour Paige. Os dois trocam ofensas e acusações, discutem sobre machismo e feminismo e acabam juntos no final.

Kendrick Lamar Mr. Morale
Foto: Renell Medrano

Em “Count Me Out” e “Crown” ele aponta a sua mira para fama e rejeita a posição de ídolo. “E eu não consigo agradar todo mundo / Não, eu não consigo agradar todo mundo”. Ele repete no refrão e em seguida conclui: “Pesada é a cabeça que escolhe usar a coroa / Àquele que muito é dado, muito é exigido.”

Em “Savior” ele continua a discussão sobre idolatria citando J. Cole, Future, LeBron James e ele próprio para defender que a excelência de homens negros não os tornam salvadores. Ele ainda aproveita para fazer uma crítica aos cristãos anti-vacina. 

Aunt Daries” traz a história de um primo e um tio que se assumiram como pessoas transgêneros e reflete sobre LGBTQIA+fobia, apotando falhas da igreja e fazendo uma autocrítica questionando o uso ofensivo do termo “faggot” (em tradução livre para “bicha”, em português) em letras de rap. 

Kendrick Lamar Mr. Morale
Foto: Renell Medrano

Mother I Sober” é outro dos momentos mais íntimos do álbum. Com a voz de Beth Gibbons, vocalista do Portishead, Kendrick revisita o passado da sua família e o histórico de abuso e violência doméstica e ouve uma voz feminina que diz estar orgulhosa por ele ter quebrado um ciclo geracional. 

Mirror” encerra com uma síntese de tudo o que foi abordado na obra. O autor reflete sobre si mesmo, como se estivesse diante de um espelho, e decide negar o papel de guia moral e salvador da pátria, para ser honesto consigo mesmo, com a família, o público e com suas fragilidades.

Em “Mr. Morale & the Big Steppers“, Kendrick Lamar não tem pudor de expor o que muitas pessoas preferem esconder sobre elas mesmas. Em uma tentativa de desconstruir a imagem de ídolo nacional e se mostrar completamente humano, ele dá forma a mais uma obra paradoxalmente gigantesca.